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D3$C0NF!GURAD@!

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Carolina Cury
out. 16 - 5 min de leitura
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Quarta, 21 de abril de 2021. Como de costume, separei minhas sacolas de pano e desci animada para feira, na rua de trás da minha casa. Chegar lá é como ir à um parque de diversões! Uma paleta completa de frutas, flores, texturas e aromas. A diversidade de pessoas, as mais variadas comidas, a proximidade dos feirantes com a gente. Um clima de aconchego em plena pandemia. Paro em frente à minha barraca favorita e pergunto pela filha do feirante, uma bebê sapeca que vejo crescer pela tela do celular. Brigo com ele para ajeitar a máscara no nariz e nos saudamos relando os cotovelos. Vejo aquela estrutura simples de madeira abarrotada de riquezas da terra. Meu amigo me conhece bem e já separa caquis translúcidos e mangas madurinhas. Tâmaras, abacaxi, uvas passas. Tudo doce, puro mel! Me diz. Saio satisfeita com a festa de cores que trago para decorar a fruteira onde repousarão provisoriamente os tesouros nutritivos. Aproveito para preparar a minha mochila e organizar o coração para a primeira químio com gostinho azedo de angústia e ansiedade. No dia seguinte, sou recepcionada pela querida xará @caroltellechea ao local da quimioterapia. A enfermeira de cachinhos fofos que arruma meus cobertores, tira todas as minhas dúvidas e me aplica os medicamentos. Ela se paramenta com um avental estilo astronauta enquanto pluga o meu catéter ao soro com o remédio vermelho, a químio destruidora de Aliens intrusos. Brincamos que o medicamento nem parece tão ruim assim, lembra até um Aperol Spritz sem as rodelas de laranja! Rimos. Volto para casa me sentindo eu, talvez ligeiramente desatinada.
No dia seguinte, corro para cozinha nauseada e varada de fome simultaneamente e então começo a notar as desconfiguracões! Aquele perfume encantador impregnou até o último azulejo. Meu nariz parece ofendido. Divido uma manga ao meio e a língua rejeita imediatamente a sua doçura intragável. O cheiro açucarado de fruta parece estar exagerado, como se alguém tivesse “errado a mão” na receita. Até a simples maçã, com seu gosto tão suave só é suportada com um punhado de sal. Vovó me ensinou na infância a comer a fruta assim e eu achava um ato inusitado e até transgressor. Naquele momento me caiu feito uma luva! Tangerina com shoyu, pêra com manjericão. As combinações eram feitas de forma intuitiva como um chef que segue a intuição das suas entranhas. Fui vegana há 5 anos e antes que me perguntem, não tenho saudades de carne, muito menos de queijo. Preparo os legumes para o almoço e me esbaldo no colorido borbulhante da panela. Meu corpo implora um ovo. Péra, pão com ovo! Gema mole. O corpo não se aquieta enquanto não atendo o pedido como uma criança insistente puxando a barra da saia da mãe. Passei o dia empazinada. Tinha calafrios, pelo corpo todo. Sentia os pêlos da espinha subirem e descerem como se executassem uma grande “Ola”. O labirinto rodopiava mais que a saia dos derviches em transe. Depois vieram as náuseas seguidas por uma fome insaciável.
Abri a geladeira e avistei o queijo, mas ignorei. Flavio devorava uma lasanha à bolonhesa. Nunca tive apreço por este prato. Pedi um pedaço. Ele me olhou estranho. Era meia-noite quando Fiuk resolveu preparar um strogonoff. Fiquei observando ele incorporar o creme de leite ao molho de tomate, a picar a cebola, adicionar condimentos. Ele jogou cubos de frango quente na panela e eu quase consegui senti o cheiro da minha mãe na cozinha. Decidi que faria QUALQUER COISA para comer um pouco daquele strogonoff. Mas tava tudo fechado, né? Abri a geladeira e devorei o resto da lasanha. No dia seguinte, me joguei no açaí mas o corpo queria mesmo era chocolate. Dei frutas com especiarias para as minhas células, mas elas imploravam kibe frito. Deitei na cama e senti que devia dormir ao contrário, com a cabeça voltada para os pés. Olhei minhas roupas escuras e não as reconheci. Os estímulos pareciam todos demasiados. Eu queria silêncio para assimilar tanto. A música que me fazia pular da cama diariamente me entojava e do dia para noite parecia habitar uma casa/corpo que não reconhecia. É como se as louças estivessem no lugar dos calçados, as roupas espalhadas pelos cômodos e os móveis todos trocados. A privada estaria ao centro do quarto enquanto a cama ocupava o lugar do chuveiro. Como é que eu faço para me achar agora no meio desta mudança? Fiquei ali, me perguntando. Os dias foram seguindo e a rebordosa do “Aperol” foi diminuindo. O layout dos cômodos não voltou ao normal, mas descobri que existem novas configurações possíveis e interessantes neste processo de formatação completa.

E você, o que sentiu nas sessões de químio? Teve alguma vontade inusitada?

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